Revista Art review_ 2012_ Felipe Scovino

Uma Breve História da Identidade na Arte Brasileira

Do suplemento Brasil, com a edição de setembro de 2012
Por Felipe Scovino

Cinthia Marcelle, Cruzada (Cruzada), 2010. Cortesia do artistaAndré Komatsu, AK-47, 2008. Cortesia do artistaMarcelo Cidade, Tempo Suspenso de um Estado Provisório, 2011, escultura. Foto: Rafael Assef. Antonio Dias, biografia incompleta, 1968. Foto: Maura Parodi. Cortesia Galeria Nara Roesler, São Paulo
No trabalho de vídeo de Cinthia Marcelle, Cruzada (Crusade, 2010), 16 músicos se encontram no centro de uma encruzilhada. Eles chegam em grupos separados de quatro, cada grupo se aproximando de um poste diferente e vestindo camisas e instrumentos combinando de cores (o grupo “amarelo”, por exemplo, carrega pratos, os tambores “vermelhos” e assim por diante). À medida que os grupos chegam, um de cada vez, seu jogo é pouco mais que ruído caótico. Quando todos se encontram, cara a cara, no centro da encruzilhada, eles começam uma ‘batalha’ coreografada na qual músicos trocam de lugar para criar quatro bandas de cores e instrumentos mistos. Agora tocando em harmonia, os músicos deixam a cena.

PERGUNTAS DE IDENTIDADE E O “SUJEITO POSTMODERNO” FORAM PROMINENTES NA ARTE BRASILEIRA DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DE DÉCADAS.

Questões de identidade e o ‘sujeito pós-moderno’ têm se destacado na arte brasileira nas últimas décadas. De acordo com o pensamento atual, as artes visuais do Brasil veem o sujeito pós-moderno não como algo ou alguém cuja identidade é unificada e estável, mas como algo fragmentado e, como a banda de Marcelle, compreendendo múltiplas identidades que às vezes podem ser contraditórias ou não resolvidas. Durante as décadas de 1950 e 60, no entanto, tudo foi diferente. Naquela época, o Brasil testemunhou a construção do que se esperava que fosse uma ‘nova’ identidade para o país – uma imagem idealizada que supostamente estava livre de influências exóticas e bolsões de pobreza. Na América, os cineastas traduziram essa imagem no mito de Carmen Miranda. No Brasil, a transformação foi alcançada através de uma fusão de industrialização intensiva, da bossa nova recentemente popularizada e do vocabulário construtivo do movimento neoconcretismo na arquitetura. Mas, quando estendida às artes visuais, a criação desse coquetel marcou o início de um mal-entendido que depois seria perpetuado nas bienais e trienais do mundo todo.

De um modo geral, nessas exposições, você encontrará um interesse particular no trabalho dos artistas neoconcretos do Brasil – especialmente Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape – e em seus aspectos participativos às custas de quase todo o resto. No entanto, embora esses artistas tivessem a intenção de estabelecer uma história ou gênese da participação na arte, esse não era necessariamente o seu “principal interesse”; na verdade, eles eram mais fascinados pelo corpo do que pelo espetáculo. O risco, então, é que a recepção internacional dominante se torne a única leitura possível desses trabalhos. E é perigoso, porque esta é uma leitura que ignora repetidamente o contexto específico em que os conceitos por trás das obras foram forjados. É claro que isso ocorre, em parte, como resultado da dispersão limitada da língua portuguesa: o pensamento crítico brasileiro não circula na mesma quantidade e qualidade que as obras de arte brasileiras. No entanto, está em jogo o que Homi Bhaba chamou de “o direito de narrar” sua própria história.

No entanto, em jogo, é o que a HOMI BHABA chamou de “o direito de narrar” sua própria história.

A partir da década de 1970, a comunidade internacional se apropriou de forma tão repetida e ruim da arquitetura, neoconcretismo e bossa nova como os novos modelos e símbolos do Brasil no exterior que se tornaram pouco mais que elementos que anunciam alguns dos maiores clichês utilizados para se referir à nossa cultura. Pois enquanto essa trindade da modernidade brasileira abraça criações artísticas altamente originais que são importantes para qualquer compreensão do que o Brasil é hoje, não é de forma alguma a única referência. Uma atmosfera densa, suja, barulhenta, inacabada e pessimista vive lado a lado com todo o (suposto) otimismo incorporado a esses outros elementos.

Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura. Ao contrário do que muita gente pensa, as obras produzidas durante esse período não faziam parte de algum movimento artístico de guerrilha; ao contrário, eram atos individuais que investigavam alegorias e metáforas do que ocorreu durante aqueles violentos anos de repressão. Tomemos, por exemplo, a pintura de Antonio Dias Incomplete Biography (1968). Não há imagem do artista ou de qualquer outra pessoa na obra; apenas uma alusão à forma e ao espaço (a palavra ‘deserto’ está escrita no meio da tela), uma cartografia que lembra o infinito, oferecendo-nos um território sem paredes, um território propício à liberdade, em contraponto a uma sociedade isso estava sendo tão opressivamente supervisionado. Afinal, Dias, um artista da Paraíba, já havia atravessado (ou vivido) no Rio de Janeiro, Paris, Milão e Nova York para escapar da repressão e procurar novas formas de aprimorar sua arte. Como alguém se localiza em um mundo cujas fronteiras são fechadas em certa medida ou em outra?

Apesar das diferenças em termos de técnica e poética, existem muitas semelhanças quando as obras de Dias e artistas de uma geração mais jovem – André Komatsu e Marcelo Cidade, por exemplo – são colocadas juntas. Se sua arte assume a forma de telas que representam camuflagem do exército (no caso de Dias), instalações que representam um bunker (AK-47 da Komatsu, 2008) ou esculturas feitas de vidro reforçado com aparentes ferimentos a bala (como no Tempo Suspenso de um Estado da Cidade Provisório / Suspending Time for a Provisional State, 2011), os trabalhos dos três primeiros sinais de conflito, bem como sua incorporação ou reversão. Diferentes poéticas de gerações distintas se tornam visíveis por meio de uma discussão envolvendo política, medo e conquista de território, construindo uma rede de significados que termina em uma discussão sobre a noção de ‘colapso’ no contemporâneo.

Em certo sentido, esse é um tema vago – na arte, nos últimos séculos, não houve escassez de colapso, transformação e reconfiguração. Mas o colapso na obra desses artistas não pressupõe uma idéia do fim da arte; ao contrário, é o produto de uma visão de mundo política e ideológica. As obras de Cidade e Komatsu não se relacionam a um local específico, mas a um desejo de tornar transparentes as falhas compartilhadas do mundo (embora isso não imponha necessariamente uma visão niilista de sua produção). Não há folclore ou exotismo nas obras desses três artistas – ou em muitas das artes visuais brasileiras pós-década de 1970 – justamente porque o que o espectador espera, pensa ou imagina sobre o Brasil está tão longe das experiências que invoca. Conforme apontado pelo crítico Paulo Venancio Filho, em 1989, com relação às obras de Cildo Meireles e Tunga (artistas que surgiram no início dos anos 1970): ‘Quem espera que o Brasil seja temático, com toda a sua cor local, certamente não o encontrará. aqui.’

‘TODOS ESPERAM QUE O BRASIL SEJA TEMÁTICO, COM TODA A SUA COR LOCAL, CERTAMENTE NÃO O ENCONTRARÁ AQUI.’ – TUNGA

As retrospectivas de Oiticica e Clark realizadas em museus americanos e europeus durante as décadas de 1990 e 2000 (ao mesmo tempo em que artistas como Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Ernesto Neto, Jac Leirner, José Damasceno e Valeska Soares emergiram no exterior) confirmaram o crescente interesse em e importância da arte brasileira no cenário internacional. No entanto, os temas com os quais essas obras estão associadas ainda giram em torno de uma visão estreita da política, do corpo ou da participação: os comentários em torno deles se encaixam facilmente nas descrições de um certo toque exótico ou algum elemento que une a inventividade a uma ‘personalidade’ brasileira. O período em que Clark e Oiticica estavam surgindo – as décadas de 50 e 60 – culminou no surgimento da abstração no país, que pouco a pouco substituiu o desejo das gerações anteriores de exibir o Brasil e seu povo como realmente eram: as vítimas da e negligência política, ou rica em cultura e natureza. Esse período, algumas vezes descrito como ‘modernidade tardia’, também coincidiu com o início de práticas institucionais maduras e relevantes no país – a primeira Bienal de São Paulo foi realizada em 1951, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo e seu homólogo, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, inaugurado em 1948 – e a criação de novas condições experimentais e, finalmente, poéticas, exemplificadas na interação entre escultura e performance de obras de Antonio Manuel , ou mesmo em Penetrables, de Oiticica (que o artista produziu nas décadas de 1960 e 1970), que permitiu que os artistas se envolvessem com questões de s utopia e instâncias altamente complexas de subjetividade. Esses temas também podem ser encontrados em obras produzidas por Clark ou Mira Schendel (que, por sua vez, não devem ser confundidas com um estado ‘diferente’ e ‘exótico’, nem tão prontamente relacionado à arte conceitual). E é esse desenvolvimento que é essencial para o gene