Revista Select _2015

André Komatsu – disfuncional, mas real

O artista paulistano, convidado para a 56ª Bienal de Veneza, usa elementos construtivos para criar metáforas e desmontar ideia

Márion Strecker

N° EDIÇÃO: 23

PUBLICADO EM: 28/04/2015

CATEGORIA: A REVISTAPORTFÓLIO

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Mato Sem Cachorro Não Tem Dono (2005), registro de ação com instalação de uma espécie de “pipicat” em sala expositiva (foto: Cortesia do artista)

A bandeira brasileira na fachada do pavilhão nacional na Bienal de Veneza, a partir de maio, vai estar ladeada por um par de tênis velhos. Essa é a maneira que o paulistano André Komatsu encontrou para ressaltar que a nação é mais bem representada pelo homem comum, não pelo campo verde e o losango amarelo oriundos da bandeira imperial portuguesa, pelas metáforas das riquezas naturais, nem pelos ideais positivistas de ordem e progresso. Komatsu vai representar o Brasil ao lado do português-carioca Antonio Manuel e da paraense Berna Reale, artistas também escolhidos pelo curador Luiz Camillo Osorio, diretor do MAM do Rio e responsável pela exposição nacional na 56ª Bienal de Veneza, de 9 de maio a 22 de novembro. A participação brasileira é financiada pelo Ministério da Cultura por meio da Funarte (Fundação Nacional de Artes) e produzida pela Fundação Bienal de São Paulo, no pavilhão nacional mantido na cidade italiana pelo Ministério das Relações Exteriores.

“Representar é uma palavra superforte. É uma honra, mas represento apenas parte das artes visuais do Brasil, parte de uma classe socioeconômica. A arte sempre foi utilizada como um instrumento de poder, mas eu estou cagando para isso. Não represento o governo. O trabalho fala desse sistema de controle”, diz Komatsu, filho de arquiteto e formado, em 2002, em Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), escola da elite paulistana. Ele mora atualmente na Vila Mariana e divide um ateliê com os colegas artistas Marcelo Cidade e Keila Alaver no bairro de Quarta Parada, na região sudeste de São Paulo, cujo nome deriva do fato de ter sido até 1981 a quarta parada da Estação de Ferro Central do Brasil. Komatsu nasceu pouco antes disso, em 1978.

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O Estado das Coisas II, instalação (2011) com um par de tênis velhos (foto: Cortesia do artista)

 

Metáforas da situação social, econômica ou política são frequentes na obra de Komatsu, bem como reflexões sobre o próprio ofício. A obra mais antiga deste Portfólio de seLecT é Y0K (2002). Trata-se do registro de uma performance filmada nos tempos da Faap, em que Komatsu salta em direção a uma quina de parede, numa tentativa de “desvirginar o vazio”. A ideia não era apresentar a performance ao vivo, muito menos reencená-la no futuro. Outro ponto importante para Komatsu é gostar do anonimato. “Poderia ser qualquer um”, diz ele. “Não vejo a performance como espetáculo, mas como um meio de entender a situação real através de uma ação real”. Em Y0K, o 0 representa a quina da parede, enquanto o Y e o K são uma referência a Yves Klein, autor de uma célebre fotomontagem chamada Salto no Vazio (1960), em que o artista francês, pioneiro da performance e da arte conceitual, aparece se lançando no ar, numa alusão crítica ao programa espacial.

Na instalação Mato Sem Cachorro Não Tem Dono (2005), Komatsu montou uma espécie de “pipicat”: um canto de areia sobre o qual ele mesmo urinou, para demonstrar que o espaço institucional da arte é uma ação domesticada. Sem prever como o público reagiria, o artista viu meninas e rapazes imitarem sua atitude nas exposições, e urinarem também na sua obra, tornando o espaço “insuportável”.

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Ordem Casual 3 (2010), fotografia com grid digital impressa em jato de tinta sobre papel de algodão, e desenho em ponta-seca (foto: Cortesia do artista)

 

A instalação Atlas (2007), com o nome do mito grego condenado a levar o mundo nas costas, é uma barra de madeira presa entre o chão e o teto do espaço expositivo, e no chão a barra pressiona uma camiseta, simbolizando o peso que as pessoas carregam em nossa sociedade. Na instalação Ícone (2008), Komatsu desvia a lâmpada de uma luminária para dentro de um buraco na parede, de modo que a luz ilumine não a sala de exposição (o “espaço do teatro”), mas, sim, o almoxarifado, um local que o público não frequenta. “O marginal move-se melhor que o herói, porque o herói é um ícone, torna-se um dogma, ele é referência, enquanto o marginal é o oposto: não tem o brilho, mas é capaz de criar soluções mais versáteis e menos burocráticas”, argumenta.

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Atlas (2007), instalação com madeira, barra rosqueada, parafuso e camiseta (foto: Edouard Fraipont)

 

As soluções que as pessoas dão para a arquitetura da cidade também são exploradas por Komatsu, como na série Ordem Casual (2010). O método usado foi fotografar uma cena urbana, aplicar no computador um grid digital, ampliar a imagem em jato de tinta sobre papel de algodão, e aí usar ponta-seca sobre o papel para marcar um novo grid. O desenho segue a composição mostrada na foto, numa tentativa de racionalizar o casual. Time Out (2013) traz um relógio instalado de tal modo que a trajetória de um dos ponteiros está bloqueada por um maço de papel sulfite. As folhas representam a burocracia, que impedem o tempo de correr. Um trabalho ainda inédito é Água Suja, um objeto cinético feito com um balde cheio.

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Y0K (2002), imagens de vídeo de 7’’, em que o artista salta para a quina de parede (foto: Cortesia do artista)

 

As duas instalações que Komatsu pretende mostrar em Veneza têm nomes semelhantes. Se O Estado das Coisas II vai exibir um velho par de tênis pendurado na fachada, Status Quo será ainda mais contundente. Consiste em dois corredores laterais que começam com 1 metro de largura e se estreitam até 50 centímetros. No centro do espaço haverá uma grande gaiola, rasgada. É pelo rasgo que o público se sentirá atraído e, fatalmente, quererá entrar. “Veja só: entrar na gaiola será um alívio! É uma servidão voluntária em relação ao fluxo”, diz Komatsu. “A história é uma grande manipulação. A gente vive numa sociedade funcional, produtiva, por isso é tão difícil se desvencilhar.”