André Komatsu – disfuncional, mas real
O artista paulistano, convidado para a 56ª Bienal de Veneza, usa elementos construtivos para criar metáforas e desmontar ideia
Márion Strecker
Mato Sem Cachorro Não Tem Dono (2005), registro de ação com instalação de uma espécie de “pipicat” em sala expositiva (foto: Cortesia do artista)
A bandeira brasileira na fachada do pavilhão nacional na Bienal de Veneza, a partir de maio, vai estar ladeada por um par de tênis velhos. Essa é a maneira que o paulistano André Komatsu encontrou para ressaltar que a nação é mais bem representada pelo homem comum, não pelo campo verde e o losango amarelo oriundos da bandeira imperial portuguesa, pelas metáforas das riquezas naturais, nem pelos ideais positivistas de ordem e progresso. Komatsu vai representar o Brasil ao lado do português-carioca Antonio Manuel e da paraense Berna Reale, artistas também escolhidos pelo curador Luiz Camillo Osorio, diretor do MAM do Rio e responsável pela exposição nacional na 56ª Bienal de Veneza, de 9 de maio a 22 de novembro. A participação brasileira é financiada pelo Ministério da Cultura por meio da Funarte (Fundação Nacional de Artes) e produzida pela Fundação Bienal de São Paulo, no pavilhão nacional mantido na cidade italiana pelo Ministério das Relações Exteriores.
“Representar é uma palavra superforte. É uma honra, mas represento apenas parte das artes visuais do Brasil, parte de uma classe socioeconômica. A arte sempre foi utilizada como um instrumento de poder, mas eu estou cagando para isso. Não represento o governo. O trabalho fala desse sistema de controle”, diz Komatsu, filho de arquiteto e formado, em 2002, em Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), escola da elite paulistana. Ele mora atualmente na Vila Mariana e divide um ateliê com os colegas artistas Marcelo Cidade e Keila Alaver no bairro de Quarta Parada, na região sudeste de São Paulo, cujo nome deriva do fato de ter sido até 1981 a quarta parada da Estação de Ferro Central do Brasil. Komatsu nasceu pouco antes disso, em 1978.
Metáforas da situação social, econômica ou política são frequentes na obra de Komatsu, bem como reflexões sobre o próprio ofício. A obra mais antiga deste Portfólio de seLecT é Y0K (2002). Trata-se do registro de uma performance filmada nos tempos da Faap, em que Komatsu salta em direção a uma quina de parede, numa tentativa de “desvirginar o vazio”. A ideia não era apresentar a performance ao vivo, muito menos reencená-la no futuro. Outro ponto importante para Komatsu é gostar do anonimato. “Poderia ser qualquer um”, diz ele. “Não vejo a performance como espetáculo, mas como um meio de entender a situação real através de uma ação real”. Em Y0K, o 0 representa a quina da parede, enquanto o Y e o K são uma referência a Yves Klein, autor de uma célebre fotomontagem chamada Salto no Vazio (1960), em que o artista francês, pioneiro da performance e da arte conceitual, aparece se lançando no ar, numa alusão crítica ao programa espacial.
Na instalação Mato Sem Cachorro Não Tem Dono (2005), Komatsu montou uma espécie de “pipicat”: um canto de areia sobre o qual ele mesmo urinou, para demonstrar que o espaço institucional da arte é uma ação domesticada. Sem prever como o público reagiria, o artista viu meninas e rapazes imitarem sua atitude nas exposições, e urinarem também na sua obra, tornando o espaço “insuportável”.
A instalação Atlas (2007), com o nome do mito grego condenado a levar o mundo nas costas, é uma barra de madeira presa entre o chão e o teto do espaço expositivo, e no chão a barra pressiona uma camiseta, simbolizando o peso que as pessoas carregam em nossa sociedade. Na instalação Ícone (2008), Komatsu desvia a lâmpada de uma luminária para dentro de um buraco na parede, de modo que a luz ilumine não a sala de exposição (o “espaço do teatro”), mas, sim, o almoxarifado, um local que o público não frequenta. “O marginal move-se melhor que o herói, porque o herói é um ícone, torna-se um dogma, ele é referência, enquanto o marginal é o oposto: não tem o brilho, mas é capaz de criar soluções mais versáteis e menos burocráticas”, argumenta.
As soluções que as pessoas dão para a arquitetura da cidade também são exploradas por Komatsu, como na série Ordem Casual (2010). O método usado foi fotografar uma cena urbana, aplicar no computador um grid digital, ampliar a imagem em jato de tinta sobre papel de algodão, e aí usar ponta-seca sobre o papel para marcar um novo grid. O desenho segue a composição mostrada na foto, numa tentativa de racionalizar o casual. Time Out (2013) traz um relógio instalado de tal modo que a trajetória de um dos ponteiros está bloqueada por um maço de papel sulfite. As folhas representam a burocracia, que impedem o tempo de correr. Um trabalho ainda inédito é Água Suja, um objeto cinético feito com um balde cheio.
As duas instalações que Komatsu pretende mostrar em Veneza têm nomes semelhantes. Se O Estado das Coisas II vai exibir um velho par de tênis pendurado na fachada, Status Quo será ainda mais contundente. Consiste em dois corredores laterais que começam com 1 metro de largura e se estreitam até 50 centímetros. No centro do espaço haverá uma grande gaiola, rasgada. É pelo rasgo que o público se sentirá atraído e, fatalmente, quererá entrar. “Veja só: entrar na gaiola será um alívio! É uma servidão voluntária em relação ao fluxo”, diz Komatsu. “A história é uma grande manipulação. A gente vive numa sociedade funcional, produtiva, por isso é tão difícil se desvencilhar.”