Entrevista com Paulo Herkenhoff _Laços do Olhar_Instituto Tomie Othake_2008_en

PH: Você concorda com a idéia de que você desconstrua a noção de uma cerâmica clássica de origem japonesa no Brasil?

Essa cerâmica é por vezes vista como quase metafísica extremamente virtuosa, portadora de uma sabedoria multi-milenar.

Existem vestígios da cultura tradicional japonesa em seu trabalho?

Você se refere à olaria e lida com entulho, escombros, cacos, o imprestável que antes talvez só servisse para aterrar. São restos que talvez um dia tivessem composto momentos de linguagem arquitetônica. Você desenterra o que já não teria qualquer valor estético. O caco pode ser então a evidência da totalidade perdida, característica da modernidade. “Artista nipo-brasileiro” é um rótulo? Faz sentido, desde que indique uma especificidade, um traço singular entre as muitas nuances da arte brasileira? Por quê?

Na arte brasileira, sua produção parece estar em diálogo com Hélio Oiticica e Ivens Machado. Oiticica introduziu materiais de construção na arte com o Bólide Bacia I (B34, 1966, tijolo moído) e cascalho na Tropicália. No entanto, a melhor referência histórica está no raciocínio conjectural de Oiticica no Delirium ambulatorium (1978), um pedaço de asfalto encontrado em obra na Avenida Presidente Vargas no Rio na forma da ilha de Manhattan. O processo construtivo de Ivens Machado tem criado situações, mais que meras obras, como sistemas construtivos tensos, à beira do desmoronamento. Que outras conversas seu trabalho estabelece com a história e a contemporaneidade do Brasil? E do Japão contemporâneo? O compromisso visual de sua obra está no desafio à gravidade, no excesso em tensão e na alegoria política das estruturas de contenção da energia reprimida. Sua poética, no oposto, rejeita a noção de ruína como vínculo do drama barroco teorizado por Walter Benjamin. Sob uma nova ordem de organização, o mundo se destrói e reconstrói incessantemente. Opera sobre o precário, o vvividos. Essa surpresa cordial produz um humor discreto como uma ironia com a metrópole descarnada. De certo modo, você aborda o caráter predatório da metrópole? O que é viver numa cidade como São Paulo, construída com a contribuição do imigrante japonês?

AK: Não sei se desconstruo a noção de uma cerâmica clássica, talvez a noção e expectativa existentes em relação ao artista “nipo-brasileiro”. Vivencio a cultura japonesa no meu contexto familiar, trago alguns traços para o trabalho, sem racionalizar. Os vestígios podem existir somados ao contexto atual. Desestalbilizar o entorno diverge do virtuosismo da cerâmica clássica. Ao lidar com restos da destruição/construção me refiro a um sistema cíclico que interliga o homem, o meio, a arquitetura e a sociedade. Tento discutir o processo de dominação do homem x natureza x homem. Cacos como elementos possuidores de uma potência transformadora.

“Artista nipo-brasileiro”, rótulo, origem geográfica, impõe uma especificidade quanto ao tipo de arte e questionamento do artista. Por outro lado, não posso esquecer que a condição dos meus avós foi a condição do imigrante tentando reconstruir a própria vida noutro contexto cultural. Esta ação constrói uma  nova vida, uma nova cidade.

Em alguns momentos me lembro das obras do Oiticica, Antonio Manuel, Cildo, Paulo Brusky… dos objetos da minha infância. Kamikaze ou para todos aqueles que acreditaram, lembro-me da inocência infantil de apostar no duvidoso, descer as ladeiras num carrinho de rolimã mesmo sabendo do acidente, um grande desejo de realização que garante estas atitudes. Hoje, o sistema de arte nos faz desacreditar na potência das atitudes, do trabalho em si, o pensamento do artista vira produto. Prefiro os trabalhos que criam um sistema tenso, situações a beira do desmoronamento.

Tenho mais contato com a imagem que construí do Japão através dos meus familiares do que com o Japão contemporâneo. Penso no pós-guerra. Das cinzas para uma potência mundial. Talvez eu possa associar ao meu trabalho os fragmentos, seleciono alguns e com eles reconstruo o contexto. Do nada para um novo significado, o imigrante engoliu a “pedra” para se reerguer. O povo não mirava mais um guia, estava `as avessas.

O imigrante como um elemento que silenciosamente trabalha, agrega e vai tomando o seu espaço. Me lembrei do trabalho Metamorfo.

A metrópole  opera incessantemente, o fluxo dos cidadãos, máquinas funcionais. A arte se coloca como deslocamento dentro do sistema predatório da metrópole. Multicultural, multifacetada, pertecente e construída por imigrantes, os costumes tradicionais são contaminados e renovam-se a cada instante.