Logica da tensão dinâmica_Jacopo Crivelli Visconti _2013

Lógica da tensão dinâmica

Desde pelo menos Oeste, ou até onde o sol pode alcançar (2006), uma ação registrada em vídeo na qual André Komatsu tentava caminhar pela cidade, com a ajuda de uma bússola, mantendo sempre o mesmo rumo (para o oeste), e naturalmente esbarrando em inúmeros obstáculos, a tentativa de transpor muros e barreiras é recorrente em seu trabalho. De maneira geral, parece lícito dizer que suas obras se mantêm num estado constante de tensão, aspirando, por um lado, a uma condição de equilíbrio, e por outro negando constantemente esse mesmo equilíbrio, que se vê minado pelo esforço do próprio artista, ou do mundo, de derrubar, quebrar, desarrumar ou explodir estruturas aparentemente sólidas. A situação de luta, em alguns casos explícita e evidentemente política, em outros mais metafórica e alusiva do que real e direta, em outros ainda relativa apenas ao embate dos materiais utilizados, é o traço que de maneira mais clara define a poética do artista. No âmbito específico do choque com as barreiras da cidade (ou do espaço expositivo), por exemplo, Komatsu já utilizou (ou convidou, de maneira mais ou menos direta, o público a usar) marretas, martelos, socos, chutes, cabeçadas, fogo, urina, serras, um macaco hidráulico… Se esse estado de tensão dinâmica é explícito nas performances e nas ações realizadas pelo artista desde o início da carreira, ele permeia também trabalhos mais escultóricos, o que levou a adotar a ideia da tensão como traço fundamental na concepção deste livro. Consequentemente, as obras não foram organizadas de maneira cronológica, buscando apontar para uma teórica evolução no trabalho de Komatsu, mas a partir de analogias conceituais, com o intuito de evidenciar exatamente o estado dinâmico do trabalho.

O movimento (real, potencial ou apenas aludido) que caracteriza várias das suas obras, juntamente com a escolha de materiais pobres, em sua maioria utilizados na construção civil, permite uma leitura engajada e militante do seu trabalho, mesmo nos casos em que as questões formais parecem ser centrais. Títulos como Suspensão estrutural de poder (2012), Cooperativa antagônica (2013) ou Desvio de poder (2011), por sua vez, sugerem reminiscências foucaultianas, reforçando a sensação de que a teoria da microfísica do poder de Michel Foucault, para além dos títulos, está no cerne das preocupações do artista e até, poder-se-ia dizer, da sua visão de mundo. O discurso sobre o poder e sobre os conflitos sociais, mais ou menos latentes, permeia os materiais, influencia sua escolha e constitui, de certa maneira, a verdadeira matéria-prima das esculturas e instalações de Komatsu. Nesse sentido, a presença, recorrente desde a ação-performance Projeto – Casa/entulho (2002), de fragmentos descartados, restos, sobras encontradas em caçambas, também é reveladora do desejo de subverter os valores convencionalmente atribuídos aos próprios materiais e, de maneira mais geral, aos elementos do cotidiano, instaurando, para citar o título de outro trabalho, uma Nova ordem (2009).

Em outro trabalho, Base hierárquica (2011-), realizado em versões distintas em vários países onde Komatsu expôs, em cada um recorrendo a copos, taças e materiais de construção comuns no local, blocos de concreto ou tijolos encontram-se apoiados em copos e xícaras aparentemente simples e baratos, mas resistentes o suficiente para sustentar (juntos) o peso, enquanto os estilhaços de uma taça testemunham a fragilidade da sua elegância. Trata-se de um trabalho exemplar da simplicidade com que o artista transforma questões escultóricas “clássicas” (o peso, a resistência e a massa de alguns materiais ou objetos) em indícios de um conflito entre modelos sociopolíticos (simplificando: o proletariado unido na construção do mundo, frente à fragilidade egoísta e fadada ao desastre das elites). Como em Base hierárquica, em vários trabalhos Komatsu ensaia a construção de suas próprias estruturas, mas são raros os casos em que elas têm uma aparência sólida e estável. Mais frequentemente, como, por exemplo, em XYZ e aglomerado subnormal (2011), o estado de equilíbrio é evidentemente precário, a ponto de ter algo de milagroso. O fato de commodities como sal, açúcar e café, com seu valor econômico em permanente negociação, terem confluído no trabalho, é indício exatamente de um desequilíbrio iminente, de uma queda anunciada. Mais uma vez, o observador encontra-se numa situação dinâmica, volátil. Nesse sentido, talvez, seja preciso entender a presença recorrente dos escombros como afirmação da equivalência entre construção e destruição, considerados pelo artista momentos distintos de um único e incessante processo de transformação. Processo no qual se insere o próprio corpo do artista, que em Disseminação concreta (2006) aparece feito inteiramente de detritos.

Nos trabalhos da série Três vidros (2012), os fragmentos tornam-se a matéria-prima com que são construídas arquiteturas de linhas modernas, isoladas em lotes perfeitamente planos, seguindo à risca os preceitos modernistas. A transformação de ícones da época dourada da arquitetura nacional em aglomerados de sobras pode ser interpretada como denúncia da violência implícita no processo construtivo, ou das desigualdades que essa arquitetura, cujos sonhos democráticos naufragaram na progressiva aproximação com as elites sociais, políticas e econômicas, acaba por validar e preservar atrás de suas formas límpidas e simples. A tensão entre elementos naturais, fragmentados e aparentemente desarrumados de um lado, e formas precisas e rigorosas do outro, é recorrente no trabalho de Komatsu, mas essa contraposição é, de certa maneira, ilusória, como demonstra o galho, contorto e bruto, que contudo se encaixa perfeitamente e sustenta uma mesa milimetricamente quadrada (Cooperativa antagônica, 2013), ou ainda a imagem de um tronco, impressa num papel anônimo e simples, que quase se funde com o pontalete que a segura no alto, contra a parede (Campo aberto 4, 2013). Por conta dessas polaridades (natural e artificial, geométrico e orgânico, bruto e acabado etc.), as obras não renunciam à prerrogativa de constituírem, exatamente, campos abertos, como se estivessem ainda a acontecer na frente do observador, ao invés de apresentar-se como algo concluído.

Ao recorrer, direta ou indiretamente, à técnica da anamorfose (Anamorfose sistemática 3 e 4, ambas de 2012, e Campo aberto 2, 2013), o artista enfatiza mais ainda a necessidade de uma interpretação política ou de qualquer maneira metafórica. A chave para a compreensão de uma anamorfose é quase sempre a mudança do ponto de vista, o deslocamento que permite olhar as coisas a partir de outro ângulo, revelando como o que parecia obscuro e abstrato é, de fato, perfeitamente lógico e compreensível. É exatamente isso que a maioria das obras de Komatsu pede: uma mudança de ponto de vista, a disponibilidade para serem lidas de outra forma e entendidas de outra maneira. Os tijolos, as arquiteturas e até os relógios que confluem para o seu universo artístico são, além do que eles aparentam ser, convites à resistência social. Uma obra como Time Out (2013), por exemplo, em que umas resmas de papel sulfite impedem os ponteiros de um relógio de seguir seu curso, é antes de tudo um manifesto social e político. O ato metaforicamente carregado de parar o tempo seria impossível para uma única folha, e a força do trabalho, para além da sua beleza poética, consiste exatamente em demonstrar a potência, a carga revolucionária da união, capaz de viabilizar gestos impossíveis.

Essa mesma carga aparece no trabalho que pode ser considerado, exatamente pelo fato de fugir da lógica dominante da tensão dinâmica, o que fornece sua chave mais importante: Esquadria disciplinar / Ordem marginal (2013). Aparentemente, a contraposição entre ordens distintas é ausente aqui: os dois grupos de chapas, o segundo resultante das que “sobram” do primeiro, obedecem ambos à mesma lógica rigorosa e dedutiva. Mas algumas chapas sobram ainda, e voltam, como uma espécie de vírus, infringindo a bidimensionalidade que parecia dominar o trabalho, sobressaindo-se da parede e propondo, nas palavras do artista, “outro modelo de coexistência”. No universo aberto de André Komatsu, o próprio conceito de ordem é, poder-se-ia dizer, marginal, e não central. A ordem, tal qual a conhecemos convencionalmente, é uma das possíveis formas como o mundo pode manifestar-se, e não necessariamente a mais facilmente compreensível. Basta dar um passo, olhar as coisas de um novo ângulo, e o que parecia ordenado poderá revelar-se desarrumado, o que parecia caótico mostrar, finalmente, sua lógica irrepreensível.

Jacopo Crivelli Visconti

 

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