Entrevista com Paulo Herkenhoff _Prêmio Marcantonio Vilaça_2011/2013

Três perguntas.

PH: Inconsciente arquitetônico. O trabalho funda uma arquitetura. Seu atual interesse na filosofia de Vilém Flusser conduz suas reflexões às distinções entre o homo sapiens e o homo faber. Como se coloca a arquitetura nesse contexto conceitual? Para Bachelard, o homo faber é dotado de uma “vontade material” sobre o mundo. No entanto, seu projeto de obra, por suas reflexões sobre o espaço, os modos de construí-lo e os materiais empregados, é mais que “vontade”. Ele parece resultante de um motor subjetivo ainda mais potente, que seria o “inconsciente arquitetônico”. Sua produção responde à necessidade primal de abrigo como espaço de fantasmática, em movimento do inconsciente político em sua dimensão arquitetural. Na junção entre o vernáculo arquitetônico precário e seu projeto, está a questão dos signos articulados em discurso poético. Se em Lacan o inconsciente organiza-se como linguagem, o inconsciente arquitetônico do artista, como em seu caso (e de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Ascânio MMM e Ivens Machado), agencia a desconstrução crítica dos padrões sociais da arquitetura.

AK: A arquitetura trata de uma configuração utópica ao projetar  um lugar, ela  “projeta modelos” que poderão se transformar em “fenômenos”.  Existe um “inconsciente arquitetônico” no meu trabalho e a necessidade básica de construir  um elemento no espaço, torná-lo um lugar, mesmo que não habitável e assim desconstruir  para possibilitar  uma outra compreensão do espaço e do sistema. (Re)apresentar, através da matéria, formas que entram em um discurso de crítica e reflexão sobre o estado da arte e do mundo contemporâneo.

Qual o sentido de projetar  novos modelos de mundo se os que já existem são falhos?

O pensamento moderno, projetado na arquitetura  política/econômica da década de 50 com JK,  pretendia criar um novo modelo de cidade e com isso formular uma nova ideia de país. Talvez  a criação pela desconstrução de modelos já existentes crie resistência ao fluxo estabelecido e possa permear um campo de discussão a partir de novas configurações. Os elementos essenciais e a aparente precariedade vêm com o intuito de reestruturar e revelar nessas “construções” estruturas que, apesar de desenvolvidas e complexas, ainda são extremamente frágeis.

PH: Esfera. As prateleiras opõem razão e Gestalt. Uma reta euclidiana, que poderia ser necessária á função empírica da prateleira, é curvada pela distorção, ponto em que a escultura declara sua presença. Não é fato da gravidade nem da maleabilidade do material. Essa “obra mole”, um jogo de simulação da obra de Lygia Clark, opera no plano da percepção pelo espectador. Em que medida sua obra demanda uma projeção de significados e ações de percepção de parte do espectador?

AK: Tento criar trabalhos que possam permear a interpretação do outro. Uma obra fechada acaba nela mesma, não possibilita uma conversa e estabelece regras, e isso é uma coisa que eu tento não fazer.

Há uma distorção da percepção, mas existe uma diferença com o trabalho da Lygia, porque utilizo um objeto funcional com a intenção de criar uma outra relação com o espaço arquitetônico. A prateleira conversa com o interior da arquitetura, segue o desenho da arquitetura e o organiza. A arquitetura abriga a prateleira e a prateleira amolece e tensiona o desenho e o sistema que a abriga.

Em alguns dos meus trabalhos a participação do espectador é o significado da obra, ela existe a partir do momento que há uma ação do outro, como é o caso da instalação “mim Tarzan , você Jane” e na ação coletiva que existiu em “Mato sem cachorro não tem dono”.  Em outros casos,  o trabalho é posto e existe  a partir  desta distorção de sentidos, como é o caso das “prateleiras”  ou ainda por uma ação ordinária, um acidente colocado como foco do trabalho, uma falha que permite outras interpretação pelo fato de corromper  bloqueios ou de enfatizá-los. Os significados estão postos e são coletados no dia a dia, penso  na relação de estranhamento estabelecida com outros significados.

PH: Maré. Na exposição Travessias no Complexo da Maré (2011), você construiu uma estrutura feita de tijolos aparentes, vergalhões e tábuas de madeira com um léxico de colunas, vigas e passagens. A construção escapa de qualquer utilidade prática e não se propõe a atuar como monumento. No entanto, você utiliza o vocabulário de materiais da arquitetura vernacular desta comunidade para propor a precariedade. O lugar do trabalho é o mesmo lugar da produção empírica de saberes construtivos do morador da comunidade que acolhe a exposição. O título da obra, XYZ e Aglomerado subnormal (2011), é aparentemente críptico, mas indica a equação dialética do trabalho. Na Maré, como em milhares de comunidades periféricas no país que resolvem informalmente seu problema habitacional, a intuição e o inconsciente arquitetônico. O primeiro termo (“XYZ”) corresponde à formulação do espaço vetorial e justapõe coordenadas cartesianas sob aquilo que é conhecido no lugar pelo processo da intuição. O estranho termo “aglomerado subnormal” é o modo como o IBGE designa favelas e assentamentos assemelhados. XYZ e Aglomerado subnormal trata de uma crítica ao conhecimento e ao Estado em sua impossibilidade de dar conta da experiência do sujeito e das comunidades?

AK: O trabalho realizado existe como crítica real ao entendimento do que é  construído. Ao estabelecer  o nome do trabalho com dois títulos penso que,  se por um lado constituo uma arquitetura que se sustenta e se adapta às possibilidades, por outro esta arquitetura agrega, estabelece e contamina um espaço formando um lugar.

Demarcar, estabelecer, desaparecer…

Penso que dentro das designações e catalogações do IBGE estas construções sejam consideradas como um estado fora dos padrões “normais”, ou seja,  uma irregularidade diante dos padrões estabelecidos. No entanto, a leitura que o Estado faz destas edificações é defasada. A adaptação das favelas promove  uma leitura de uma arquitetura real que personifica não um projeto utópico do modernismo, mas  uma estrutura orgânica que se adapta às dificuldades e necessidades específicas das comunidades.

De fato não se trata de um monumento ou de um elemento prático, pois o monumento estabelece a representação de um marco, cria uma paralização e pode carregar um caráter  representativo de um ideal político estagnado. A constru(a)ção precária permite romper limites, não estabelece nem firma, mas promove um campo vivo e metamórfico.

Entrevista realizada por Paulo Herkenhoff por ocasião do 4 Prêmio Marcantonio Vilaça ( 2011-2013)

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