Jornal O Globo _ 2017

PEQUIM — Dois países gigantes, grandes parceiros comerciais, mas tão distantes fisicamente quanto nas identidades culturais. Brasil e China pouco se conhecem quando o assunto são as artes visuais. São justamente este estranhamento e as possíveis convergências o mote da exposição “Troposphere”, em cartaz até 23 de fevereiro no Beijing Minsheng Art Museum, na capital chinesa. Trata-se da primeira retrospectiva conjunta de arte contemporânea destas duas nações, reunindo nomes consagrados e novas gerações de artistas brasileiros e chineses. Telas, esculturas, instalações, fotografias e vídeos de 42 artistas (21 de cada país) foram dispostos aos pares, num diálogo artístico que confronta trabalhos de pessoas que nunca se viram. O que aproxima cada conjunto de peças são critérios tanto objetivos — como a pincelada, tons, materiais ou estilos — quanto subjetivos, como questionamentos, temática ou emoções.

Curadora da exposição ao lado de Bao Dong, Sarina Tang, chinesa nascida em Xangai e criada em São Paulo, diz que as afinidades surpreenderam os próprios artistas e serão captadas de imediato pelo visitante.

— Selecionamos obras de grandes nomes e de jovens artistas, que representassem de uma maneira ampla a produção dos dois países. A ideia de colocá-los juntos busca facilitar o reconhecimento pelo público de suas muitas afinidades — explicou Sarina durante a montagem da exposição, uma parceria entre a Currents Arts, a Embaixada do Brasil em Pequim e o banco Minsheng.

É assim que os curadores puseram, lado a lado, as instalações “Sala de trabalho”, do mineiro Afonso Tostes, e “No border”, do chinês Fu Zhongwang.

— Tostes dispõe na parede ferramentas agrícolas, cujo design praticamente é o mesmo há séculos, esculpindo seus componentes de madeira. Fu, na sua obra, faz referência à construção tradicional na China, onde por milênios se usou método de encaixe e pino em madeira. O artista constrói várias formas esculturais usando essa prática antiga — exemplifica Sarina.

TEXTURA SIMILAR

O fotógrafo paulistano Caio Reisewitz exibe fotos, uma delas, uma noturna no Aterro do Flamengo, que tem o mesmo matiz de azul de uma imagem do chinês Jiang Zhi registrada em Shangai. Já entre o paulistano Rodrigo Andrade e o chinês Li Songsong, a aproximação se dá pela materialidade. Ambos usam, em seus trabalhos — “Onda verde e azul”, de Andrade, e “Lago sem nome”, de Li — o impasto, técnica que consiste em pinceladas espessas de tinta sobre a tela (apesar de, no universo temático, eles se distanciarem, já que os assuntos propostos pelo chinês são frequentemente políticos).

Além dos artistas já citados, há ainda, do lado brasileiro, obras de Adriana Varejão, Tunga, Vik Muniz, Luiz Zerbini, Leda Catunda, Abraham Palatnik, St Clair Cemin e Ana Prata, entre outros. Do lado chinês, Song Dong — que já exibiu no CCBB do Rio, em 2015, a sedutora instalação “My city” — Cai Lei, e Ma Qiusha.

As obras vêm do acervo de museus, galerias e colecionadores do Brasil, da Europa e da China. Foi um esforço monumental, em que os organizadores enfrentaram, ao longo de um ano, obstáculos burocráticos e de logística. Dois dias antes da inauguração, funcionários do museu ainda tentavam transportar para dentro da instituição o imenso tronco de 2,5 toneladas, recém-chegado de Londres, que comporia a instalação “Eu, você e lua” (2014), do brasileiro Tunga (1952-2016), um dos destaques da mostra. O tronco chegou à China por navio, separado das peças mais leves, porém delicadas, que vieram de avião em embalagem especial.

As peças vindas do Brasil por pouco não chegam a tempo da exposição. Foi preciso aguardar que se resolvesse uma greve na alfândega para serem embarcadas. As 16 fotografias que compõem “Blue tango” do brasileiro Miguel Rio Branco, também deram trabalho. Como não foi possível contar com a série pertencente a um colecionador, foi necessária a autorização do artista para que fizesse uma nova tiragem especialmente para a exposição. Depois de Pequim, ela voltará para a galeria que o representa no Brasil e poderá ser exibida em outras mostras.

Alguns trabalhos foram criados em Pequim, como a instalação “Autômatos”, do paulistano André Komatsu, um grande labirinto de 15 peças feito a partir de materiais industriais (placas de aço, vidro e espelhos, por exemplo). A obra foi concebida especialmente para a mostra, e montada em uma fábrica na capital chinesa. Afonso Tostes também trabalhou num ateliê montado em Pequim. Sua obra, inédita, extrapola o diálogo proposto pela mostra, pois mistura dez instrumentos vindos do Brasil a 30 ferramentas semelhantes coletadas no campo chinês, na província Hebei, vizinha à capital, e depois esculpidas pelo artista.

Para Tostes, a envergadura de “Troposphere” vai muito além de uma exibição que mostre a relação entre Brasil e China.

— A importância dessas obras é de uma escala que transcende os limites de uma exposição interessada apenas na relação Brasil e China. Para mim, foi uma surpresa, porque eu não conhecia tão profundamente a produção chinesa de arte contemporânea.