Até onde a vista alcança_ Fernanda Lopes_Galeria Athena

Ao contrário do que pode parecer, o título dessa exposição está longe de ser uma afirmação, ou uma simples constatação. É, na verdade, uma pergunta, ou um desafio, que acompanhou todo o processo de concepção e construção do que agora se vê na Sala Cubo, na Galeria Athena. Ele parte do entendimento de que olhar a paisagem não pode ser só constatar o que está à nossa volta, mas sim pensar como o que está à nossa volta se constitui. Chama atenção para a diferença entre olhar e ver. Ver é duvidar, olhar duas vezes. Ver é não nos contentarmos com uma posição passiva e tornar nosso olhar (e todo o corpo) mais ativo. Uma simples paisagem não tem nada de simples.
Nesse sentido, obras como as de Castagneto, Volpi e Pancetti tornam presente na exposição a lembrança que nossa história (não só da arte, mas geral) tem como um de seus marcos de início, e depois reinício, a paisagem. A narrativa de “descobrimento” do Brasil passa pela ideia de uma paisagem exótica, não-europeia, registrada pelas expedições artísticas e científicas que além de fauna e flora, incluíam também os “tipo humanos”. A obra mais antiga presente na exposição é uma pequena pintura de Castagneto, realizada no final do século 19. Aos olhos de hoje ela pode parecer uma pintura convencional, mas é um desdobramento da participação do artista no Grupo Grimm. O alemão George Grimm foi professor da cadeira de paisagem, flores e animais da Academia Imperial de Belas Artes – criada em 1826 inaugurando o ensino artístico no Brasil em moldes semelhantes aos das academias de arte europeias. Em 1884, Grimm deixa o cargo por divergências com a diretoria e outros professors relacionadas à metodologia de ensino da instituição. Longe da academia, cria um ateliê ao ar livre, na Praia de Boa Viagem em Niterói, onde estimula a prática da pintura ao ar livre ao lado de outros artistas, alguns ex-alunos da Aiba, como Antonio Parreiras e o próprio Castagneto. Essa mudança influencia fortemente sua pintura, que deixou de lado princípios acadêmicos (europeus) como precisão, realismo e proporção, em favor de pinceladas livres, forte gestualismo e tendência ao monocromatismo.

Décadas depois, nos primeiros anos do Brasil República, as fachadas Alfredo Volpi e as marinhas de José Pancetti, por exemplo, são desdobramentos de uma insatisfação que já vinha sendo manifestada em iniciativas anteriores, como o Grupo Grimm, que buscavam deixar de lado o olhar estrangeiro na construção do nosso imaginário (e nossa história). A Semana de Arte Moderna de 1922 é um marco dessa discussão, com um discurso que chamava atenção para a necessidade de redescobrir o Brasil. Olhar nossa paisagem e nossa história com “olhos livres”, como disse Oswald de Andrade no manifesto Pau-Brasil, permeia parte da produção da primeira metade do século 20, e encontra eco na busca de autonomia que marca a arte moderna. No caso das produções de Volpi e Pancetti, é a partir do olhar para a paisagem que se estrutura o processo de simplificação da forma, em uma aproximação da abstração, se constituindo como referências para a produção geométrica que ganha força nos anos 1950 no Brasil.

Além de pintura, Até onde a vista alcança apresenta também fotografia, objeto, escultura, intervenção, colagem, vídeo e obra sonora, revelando, para além de uma dimensão mais histórica, a possibilidade de releituras contemporâneas da paisagem. Reunindo obras realizadas nas últimas cinco décadas, incluindo algumas inéditas, a mostra aponta a “paisagem” como um elemento subjetivo, inconstante, e em movimento. É uma paisagem que deixa de ser pano de fundo, cenário onde algo acontece, para assumir o primeiro plano, o papel principal. É também um olhar, seja do artista, seja do público, menos passivo.

Wanda Pimentel faz referência à pintura histórica de paisagem fazendo coincidir o formato de uma janela com o formato da tela. Nela “vemos” uma das vistas mais famosas do Rio de Janeiro, mas também a estrutura da janela. Já trabalhos como de Debora Bolsoni [Banglã é estrutura que lembra uma grande janela, ou palco, cujos tecidos reagem com os movimentos e pequenos ventos do espaço onde está instalado], Julia Arbex [as Sedimentação são resultado do tempo que a artista mantem o papel em contato com a água e a argila], Thiago Rocha Pitta [tornando visível movimentações na paisagem que muitas vezes não são visíveis à olho nu, como eclipses e quedas de meteoritos] e Vanderlei Lopes [congelando um momento de passagem do tempo e de momento da paisagem evidenciado pelo deslocamento da luz] se interessam, de maneiras diferentes, em chamar atenção para o tempo que passa em uma velocidade diferente da nossa (e que por isso dificilmente percebemos).

Há também trabalhos que reconhecem a paisagem como território – um espaço resultado da ação do homem, ressaltando sua dimensão e sentido político. Noções de fronteira [Antonio Dias, Frederico Fillipi, Lais Myrrha], instabilidade [Ernesto Neto], deslocamento [Floriano Romano, Lara Ovídio, Matheus Rocha Pitta], projeto [Andre Komatsu] e escala [Ana Dias Batista e Debora Bolsoni] ressaltam a ideia de paisagem como construção – o que nos leva a pensar que, se é construída, é construída por alguém, com alguma motivação, em determinado período. A partir desse conjunto de quase 40 trabalhos e 17 artistas, Até onde a vista alcança se vale de um ponto de partida aparentemente confortável e inofensivo, como a paisagem, para apresentar diálogos entre diferentes artistas, estimulando o olhar do público para a produção artística e para o que está à sua volta.

Fernanda Lopes

 

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